Por que a representatividade LGBT importa em Harry Potter?

 
 
 
(Vamos falar sobre isso? Por que o relacionamento entre Dumbledore e Grindelwald deveria e ainda precisa ser abordado?)

            

             Em outubro de 2007, durante um evento que ocorreu no Carnegie Hall em New York  para promover o livro Harry Potter e as Relíquias da Morte, J.K. Rowling revelou em conferência que “Dumbledore é gay” e que o diretor “era apaixonado por Gellert Grindelwald”, a escritora ainda informou que “o bruxo das trevas derrotado em 1945 foi o único amor que Dumbledore teve”.

            Muito lindo e tudo mais essa revelação de que o maior e mais poderoso bruxo da saga Harry Potter é gay, mas me pergunto: Onde está essa informação nos livros ou nos filmes? Bem, essa declaração simplesmente não existe. A sociedade “hetera, branca e cis” sempre argumenta que “Dumbledore ser gay não é importante para o enredo. Que essa informação não é de interesse do Harry. Que diferença faz para o Harry saber que o Dumbledore é gay?”

           Sim, os livros são narrados pelo ponto de vista do Harry, e é justamente por isso que a informação sobre a homossexualidade do Dumbledore deveria ter sido citada e debatida pelo protagonista. Vamos lá, como a orientação sexual do Dumbledore afeta a história? Simples, da mesma forma que você ignorantemente fez a pergunta homofóbica, você também pode fazer as seguintes interrogações: Será se o Harry teria compreendido melhor os erros cometidos pelo diretor se soubesse que os sentimentos de Dumbledore por Grindelwald estavam além da amizade? Harry teria perdoado com mais facilidade os erros do diretor se tivesse percebido que Grindelwald se aproveitou do fato de Dumbledore estar apaixonado por ele para manipulá-lo?

 

(Alvo Dumbledore e Gellert Grindelwald representados em Relíquias da Morte)

 

          Obviamente virá alguém “hetero, branco e cis” nos comentários e argumentar: Mesmo que essa informação afete o enredo, como é que Harry iria saber que o Dumbledore é gay se nesse ponto da história ele já está morto? Ora essa, da mesma forma que descobrimos sobre a “amizade” (muitas aspas na palavra) entre Dumbledore e Grindelwald. Você por acaso não se perguntou: “Por que Rita Skeeter não abordou isso em seu livro?” Era o momento perfeito para Rita expor Dumbledore, e a jornalista mais inescrupulosa que chega a inventar notícias (como um triângulo amoroso entre Harry, Viktor e Hermione) e cujo o objetivo do livro “A Vida e as Mentiras de Alvo Dumbledore” era desmerecê-lo e desmascará-lo, achou que ninguém se interessaria na história: Dumbledore era apaixonado por Grindelwald e chegou a apoiar o vilão na caçada contra os trouxas? “Ah, mas Rita não tinha como saber que Dumbledore era gay”. Sério?  Então vou citar outro personagem que certamente poderia ter acesso a essa informação: Aberforth Dumbledore.

          Não seria interessante para a redenção de Alvo Dumbledore se o seu irmão Aberforth tivesse citado para Harry e companhia que “Alvo e Gellert eram bastante íntimos, o envolvimento deles estava além da amizade”? Pronto, Harry teria melhor compreensão dos sentimentos de Dumbledore lá na cena em King’s Cross (outro momento em que a revelação de que Alvo é gay poderia ter sido abordada, já que os dois chegam a discutir sobre Gellert). Harry também teria compreendido porque Grindelwald se recusou a entregar a localização da Varinhas das Varinhas para Voldemort e se manteve fiel a Alvo. Mas, é claro, que para sociedade “hetera, branca e cis” a homossexualidade de Alvo Dumbledore não afeta o enredo e é uma informação irrelevante para o ponto de vista do personagem Harry Potter.

          Muito bem, se a homossexualidade do Dumbledore não é importante para o enredo, o que justifica a ausência de outros personagens LGBTs? Nenhum dos companheiros de dormitório do Harry poderia ser gay? Durante o Baile de Inverno, nos eventos do quarto livro, Harry não poderia ter visto um casal de gays ou de lésbicas dançando? Harry não poderia ter visto dois homens ou duas mulheres se pegando na Copa Mundial de Quadribol, evento que envolve toda comunidade bruxa? Quando Dolores Umbridge se torna a alta-inquisidora de Hogwarts e impõe o Decreto Educacional número 26, que proíbe que estudantes do sexo masculino cheguem mais perto do que 15 cm das garotas e vice-versa, não seria essa uma oportunidade para mostrar que casais LGBTs não foram afetados por essa Lei? Por que Harry só recebe Poções do Amor feitas por garotas? Realmente é impossível de conceber que outros rapazes poderiam estar apaixonados pelo “Eleito” nos eventos do sexto livro? Uma linha em algumas partes dos livros era o suficiente para introduzir pequenos relatos que envolvessem a comunidade LGBT. Mas a questão é que essa representatividade não existe.

 

(Johnny Depp e Jude Law como Gellert Grindelwald e Alvo Dumbledore na franquia Animais Fantásticos)

 

           Não importa você dizer que Dumbledore é gay se isso não é abordado em nenhum dos livros e ainda usar essa informação como se ela anulasse o fato de que a representatividade LGBT não existe tanto nos livros como nos filmes. Para piorar, quando a oportunidade de explorar a orientação sexual de Dumbledore surge, temos o diretor (David Yates) da nova franquia Animais Fantásticos anunciando que: “a homossexualidade do Dumbledore não será explicita”. What? Como assim? Só falta a sociedade “hetera, branca e cis” dizer novamente que essa informação não é importante para o enredo.

           Animais Fantásticos se trata da ascensão de Grindelwald ao poder. Se Dumbledore não tem coragem de duelar com o bruxo das trevas porque tem medo de seus sentimentos por Grindelwald aflorarem e ele não conseguir impedi-lo, ou pior, ele acabar sendo novamente influenciado pelo antagonista, então sim, a homossexualidade de Alvo é importante para o enredo. “Ah, mas o Dumbledore tem medo é de descobrir qual dos dois matou a irmã dele”.  Já parou para pensar que independente da resposta o Dumbledore vai se magoar? Porque as respostas para quem matou a Ariana são: Ou Dumbledore matou ela, ou seu amado assassinou sua irmã, ou então seu outro irmão é o culpado. Novamente: a homossexualidade do Dumbledore importa para o desenvolvimento do enredo.

          Ainda existem pessoas “heteras, brancas e cis” que argumentam que a homossexualidade do Dumbledore só não será abordada explicitamente no segundo filme e que existem outros três filmes em que essa questão poderá ser levantada. Interessante ponto de vista. Diga-me, só por curiosidade, quantos livros levou para você descobrir que Gina Weasley tinha uma paixonite por Harry Potter? A resposta: um livro. Pergunto agora qual era a idade da personagem? Resposta: 10 anos. Abordar a heterossexualidade de uma criança é okay, mas para abordar a homossexualidade de um homem adulto, que por acaso é um dos mais poderosos bruxos de sua época, é necessário esperar cinco filmes. Estou começando a entender a hipocrisia.

          “Ah , mas nós (heteros) tivemos que esperar 7 livros para ver Rony e Hermione se beijarem, a comunidade LGBT pode esperar 5 filmes numa boa”. Você jura? Pobrezinho de você “hetero, branco e cis” que nunca sofreu preconceito por causa da sua orientação sexual e que ainda por cima teve que esperar 7 livros para ter alguma interação heterossexual no enredo. Só para registro: Gina teve sua heterossexualidade exposta no primeiro livro quando tinha apenas 10 anos de idade; Harry começou a sentir atração por Cho Chang durante o terceiro livro quando tinha 13 anos; Hermione deu uns pegas no Viktor Krum durante o quarto livro quando tinha 14 anos; Harry deu seu primeiro beijo durante o quinto livro quando tinha 15 anos; Rony namorou Lilá Brown durante o sexto livro quando tinha 16 anos; Harry e Gina tiveram o sexto e o sétimo livros para desenvolver seu romance; isso sem contar os relacionamentos de personagens que são casados: Lilian e Thiago Potter, Molly e Arthur Weasley, Narcisa e Lúcio Malfoy, Ninfadora e Remo Lupin, Andrômeda e Teddy Tonks, Bellatrix e Rodolf Lestrange, Fleur e Gui Weasley... Mas pobrezinho de você hetero que demorou 7 livros para seu casal favorito se beijar enquanto o ÚNICO personagem gay de TODA história continua no armário.

 

(Scorpio Malfoy e Albus Severo Potter na peça de teatro "The Cursed Child")

 

              Vamos ser mais polêmicos, por que não citar nessa discussão a peça de teatro que agora faz parte do canon de Harry Potter, por que não problematizar o relacionamento de Alvo Potter (chamaremos ele de Albus para não confundir com Dumbledore) e Scorpio Malfoy em Cursed Child? Por causa da falta de representatividade LGBT essa parte do fandom buscou nas fanfictions a idealização de um casal homossexual, na maioria das vezes retratado pelo shipper Drarry (Draco + Harry), após o epílogo outro shipper homossexual ganhou destaque no universo das fanfictions: Scorbus (Scorpio + Albus).  

          Quando Cursed Child foi divulgado sabíamos que a nova história seria centrada na amizade entre Albus Severo Potter e Scorpio Malfoy e apesar de existir muitas fanfictions envolvendo os dois personagens num relacionamento homoafetivo ninguém realmente tinha qualquer esperança que isso algum dia seria retratado numa história oficial. Mas conforme lemos a peça de teatro somos surpreendidos com cenas e diálogos que nos fazem refletir se o relacionamento entre os rapazes é só amizade ou se há algo mais.

           Existem inúmeras cenas que nos fazem questionar a “amizade” dos dois garotos, são desde cenas deles se declarando como quando Albus diz para Scorpio: “Você é a melhor pessoa que eu conheço. E você não está... nem pode... ser um obstáculo... você me deixa mais forte”, ou quando o Scorpio diz para Albus: “Também não gostei muito da minha vida sem você”, temos ainda cenas em que Scorpio sente ciúmes quando vê Albus interagindo com Delfi, ou mesmo dos dois ficando envergonhados quando se abraçam mais do que o considerado “normal”.

            Eu lendo estas cenas me pegava pensando: “Meu Deus, eu estou lendo mesmo isso? Nós realmente temos um casal gay em Harry Potter?”, mas até este ponto da leitura nós só temos desconfianças de que o relacionamento de Albus e Scorpio possa estar além da amizade. No entanto, duas cenas da peça de teatro parecem gritar uma confirmação de que sim: os dois possam ser um casal gay ou ao menos vir a futuramente engatarem um romance quando mais velhos.

             A primeira cena acontece num futuro alternativo em que Albus deixa de existir e Scorpio conversa com seu pai questionando porque nesta realidade a família deles é “má” e apoia Voldemort e Draco responde: “Sabe o que eu mais amava em sua mãe? Ela conseguia me ajudar a encontrar a luz na escuridão. Ela tornou o mundo... pelo menos o meu... menos... que palavra você usou mesmo?... sombrio”. E quem é a pessoa que Scorpio pensa como sendo sua luz? É Rose a garota que ele diz estar apaixonado na penúltima cena do livro? Não. Scorpio pensa em Albus como sua luz, como a pessoa que torna seu mundo menos sombrio. Só para constar: Rose também não existe nesta linha do tempo e em nenhum momento ele se lembra ou se preocupa com a “falta” dela.

 

(Severo Snape e seu patrono: uma corsa, representando seu amor por Lílian Evans)

 

            A segunda cena que parece nos dar uma confirmação de que os sentimentos dos garotos ultrapassam a amizade acontece durante uma interação entre Scorpio e Severo Snape quando ambos são cercados por Dementadores, e este é o conselho que Snape dá para Scorpio para se livrar de seus perseguidores: “Pense naqueles que você ama, pense em por que está fazendo isso. Preste atenção Scorpio. Pense em Albus. Você está abrindo mão de seu mundo por Albus, não é? Uma pessoa. Só é preciso uma pessoa. Não pude salvar Harry por Lilian. Assim, agora me alio à causa em que ela acreditava”. E novamente, não é Rose que está em seus pensamentos, é em Albus que ele pensa para se livrar dos Dementadores.

           Então vamos recapitular: em duas cenas quando questionado sobre a pessoa que é a “sua luz na escuridão” os pensamentos de Scorpio são direcionados para Albus, nas duas cenas os adultos que interagem com Scorpio dão como exemplo seus grandes amores como sendo suas respectivas “luzes na escuridão”, nas duas cenas em nenhum momento ele pensa em Rose que segundo o desfecho do livro é o seu “grande amor”.

           Durante todo o livro o “romance” (várias aspas) entre Scorpio e Rose se resume ao garoto tentando cumprimentar a menina e a mesma o ignorando completamente com um ar de superioridade e em apenas UMA das realidades alternativas o garoto ficar preocupado com o fato de Rose não existir naquele futuro. Na única cena em que Rose age de forma bondosa descobrimos que ela só fez isso “porque os pais mandaram”. Para piorar, o livro termina com Scorpio convidando Rose para sair e ela o rejeitando com um “olhar de pena” e quando Albus questiona: “e pena é bom?”, essa é resposta de Scorpio: “A pena é o começo, meu amigo, o alicerce para construção de uma palácio... um palácio de amor”. Isso é sério mesmo? Onde está o amor próprio? Que tipo de amor pode nascer da condolência?

           O “romance” entre Scorpio e Rose literalmente só é citado na penúltima cena do livro, momento oportuno também para Albus revelar que teve uma paixonite por Delfi. E sim, eu fiquei chocada. Por quê? Bom, Albus possui 14 anos e Delfi tem 23 anos. A vilã tem minha idade, se fossemos fazer uma comparação com a vida real, eu só posso dizer que nunca na vida eu iria supor que um garoto de 14 anos poderia estar apaixonado por mim, motivo pelo qual durante todo o livro eu sequer cogitaria um absurdo desses.

           A penúltima cena no geral parece ser uma tentativa falha de assegurar que Scorpio e Albus são heteros. É como se os roteiristas dissessem: “Sei que parece que eles são um casal, mas eles não são gays. Tudo não passou de um bromance, os dois são amigos e heteros, okay?”. Os autores entregam cenas que “parecem gays” sem nunca confirmar nada, dando margem para suposições e quando tudo está “gay demais” a ponto de desaminar a parcela de fãs heteros, finalmente nas ultimas páginas da peça o roteiro resolve te revelar que tudo não passou de um “bromance”. Você passa o livro inteiro pensando que finalmente tem representatividade LGBT para no final descobrir (de novo) que TODOS os personagens da história são heteros (e que não existe a mínima possiblidade de que um casal gay possa um dia ser representado). O sentimento é de enganação.

            A referência dos nomes (Alvo Dumbledore e Alvo Potter) que parece reforçar durante a leitura que sua teoria da conspiração (porque foi o que Scorbus virou) estava certa, não passa despercebida: afinal Alvo Dumbledore é o único personagem que sabemos ser gay e, coincidentemente, nós temos um personagem com o mesmo nome: Alvo Potter, aparentemente num romance gay. Temos então dois personagens com o mesmo nome e que aparentemente são gays, mas nunca fazemos questão de dizer que eles fazem parte da comunidade LGBT. O que isso nos diz sobre a representatividade LGBT em Harry Potter? Já não passou da hora deles serem representados? O fandom de Harry Potter já cresceu. Já se passaram 21 anos, é tempo suficiente para sabermos que a maior parte do público é adulto. Não há desculpas esfarrapadas de que “isso influencia as crianças” e se quer saber minha opinião deveria mesmo influenciar. Influenciar a ser tolerante. Influenciar a ser respeitoso. Influenciar a aceitar as diferenças. Todos não apenas devem como possuem o direito de serem respeitados como iguais, assegurado (diga-se de passagem) na Declaração Universal dos Direitos Humanos, comecemos por aí. Todos devem possuir o direito de amar e de serem amados. Afinal, Amor é Amor.

 

 

Beijinhos, beijinhos, você sabe que  me ama!

By: Laura Glapinski Zacca

2018

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Laura Glapinski lauraa.zacca@hotmail.com